Vitral Submerso é a história de um regresso de Carlos Maria Trindade às origens. É também o título de um concerto para piano solo, bem como de um disco que deverá sair até ao final de 2023. No Teatro São Luiz, apresenta as composições que criou a partir de 2018, quando recuperou para o seu estúdio o Grotrian-Steinweg quarto de cauda, fabricado em 1920 e comprado para ele pelo pai quando tinha apenas 5 anos. “O resultado dessa aventura solitária está no som destas peças, que vagueiam numa espécie de neoclassicismo assumido, fruto de sentimentos variados e de uma vida musical já bastante longa”, escreve.
Quando tinha 5 anos de idade, acompanhei o meu pai a um leilão de antiguidades onde se encontrava um velho piano vertical de fabrico francês e armação de madeira. Abri a tampa e comecei a tocar as Pombinhas da Catrina com um dedo da mão direita. O meu pai murmurou: “O miúdo tem jeito. Tenho de o pôr a estudar música.” E comprou o piano.
Aos 9 anos entrei para o Conservatório da Rua dos Caetanos e foi assim que comecei a minha aventura pianística. No entanto, os duros métodos pedagógicos da altura não me conquistaram e era penoso ter de estudar diariamente num piano que nem sequer afinava.
Aos 16 anos tomei contacto com o Rock Sinfónico e comecei a apaixonar-me pelos teclados elétricos. Consegui comprar um órgão Yamaha de dois teclados e pedaleira e entrei num grupo que tocava em convívios de liceu. Estávamos nos princípios dos anos 70. A partir daí rendi-me aos sintetizadores que começavam a sair nessa altura e nunca mais quis saber do piano… até ao dia 30 de março de 2018, quando o quarto de cauda chegou ao meu estúdio.
Carregado por quatro homens, o pesado móvel dá entrada na sala que para ele foi concebida há 11 anos e que, desde essa altura, o espera. Sem pernas, pesadíssimo, entra pela porta mais larga. Eu próprio ajudei a colocar uma espuma no chão para que não riscasse o parqué. Comovido, dou-lhe as boas-vindas com um olhar silencioso, tentando esconder a minha excitação, ciente de que estes homens fazem disto a sua vida e estão apenas concentrados em acabar mais um transporte, como tantos outros. Enquanto um deles atarraxa as três pernas, decido da sua colocação na sala. Endireitamo-lo e aí está ele: o Grotrian-Steinweg quarto de cauda fabricado em 1920 está de pé. Negro e, por enquanto silencioso, já se percebe que a sala é dele. Depois de uma pequena conversa de circunstância, os homens despedem-se e desaparecem na direção da carrinha. Fecho a porta. A tarde está fria e chuvosa e, cá dentro, admiro a nova paisagem: um piano no meio do salão de xisto e pedra. O sonho tornado realidade. Os gatos aproximam-se para inspecionar o novo objeto e os cheiros que dele se desprendem. Rondam cuidadosamente o enorme vulto até que o Persa salta para o tampo e aí fica, usufruindo do inédito ponto de observação. Alguns pelos espalham-se pela superfície luzidia e tomo consciência de que, a partir de agora, sou possuidor de um objeto ao qual é preciso limpar o pó regularmente.
Desde esse dia, comecei, para além de limpá-lo, a compor para ele. O resultado dessa aventura solitária está no som destas peças, que vagueiam numa espécie de neoclassicismo assumido, fruto de sentimentos variados e de uma vida musical já bastante longa.
Carlos Maria Trindade