Edward “Ned” Kelly foi um dos mais famosos fora-da-lei australianos e a sua vida inspirou aquela que é reconhecida como a primeira longa-metragem ficcional da História do Cinema, de que hoje só resta uma cópia restaurada de 17 minutos. Já muito se escreveu sobre Ned e o seu gangue, ora retratado como o mais influente ícone cultural australiano, capaz de inspirar inúmeros trabalhos artísticos, ora como um assassino desmerecedor do estatuto de herói. O espetáculo que o teatromosca apresenta agora em coprodução com a companhia australiana Stone/Castro, criado por Pedro Alves, Paulo Castro e o músico Paulo Furtado/The Legendary Tigerman, baseia-se tanto na história de Ned Kelly como nas histórias produzidas a partir da lenda que rodeia ainda a sua vida, assente num dispositivo vídeo-cenográfico que privilegia a simultaneidade da captação e transmissão de imagens em cena, realizadas e editadas em direto, complexificando a textura espaço-temporal do evento teatral, multiplicando os níveis de presença dos atores e criando uma mise en abyme onde se espelham os processos de construção da ação cénica e dos seus resultados em vídeo. Num contexto de diluição das fronteiras entre disciplinas artísticas, cria-se um espetáculo que se ocupa tanto de reencenar as imagens sobreviventes da longa-metragem de 1906, como em (re)construir as cenas perdidas. Assim, tomando como ponto de partida a(s) história(s) de Ned Kelly e também documentos cinematográficos, literários e outros, através de processos do teatro documental, e num momento em que proliferam as chamadas notícias falsas, lança-se um olhar sobre a “transitoriedade” da História e a “frágil autenticidade” do arquivo, acreditando que legislar a memória histórica não será nunca uma atividade livre de perigos e não sujeita a erros e enganos.